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Title: Patrimônio ferroviário corre risco de desaparecer em Minas
Author: CFVV
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Rotunda do conjunto ferroviário de Ribeirão Vermelho, uma das mais maiores e mais antigas do país, está em ruínas. É hora de união das comun...
Rotunda do conjunto ferroviário de Ribeirão Vermelho, uma das mais maiores e mais antigas do país, está em ruínas. É hora de união das comunidades para tentar salvar patrimônio e transformar área em espaço cultural e educativo


FOTOS: JACKSON ROMANELLI/EM/D.A PRESS
Depois de vistoriar toda a área, Ministério Público Federal instaurou inquérito para determinar as causas e responsabilidades pelo abandono dos equipamentos e discutir soluções

Ribeirão Vermelho – A forma lembra a do coliseu de Roma, a história se confunde com o período republicano brasileiro e o cenário é de encher os olhos de todo mundo. Mas, hoje, a situação da rotunda do conjunto ferroviário de Ribeirão Vermelho, no Sul de Minas, a 218 quilômetros de Belo Horizonte e a 10 quilômetros de Lavras, faz qualquer cristão tremer nas bases, com medo de que ele desapareça e leve, tijolo abaixo, parte deslumbrante da memória de Minas. Às margens do Rio Grande e à beira da ruína, a construção circular inaugurada em 1895, para manutenção e movimentação de locomotivas, é considerada a maior da América Latina e a quarta do planeta – a área de 4,4 mil metros quadrados corresponde a quase o dobro da arena do estádio do Mineirinho, na capital. O sonho de muitos moradores é de que esses e outros espaços igualmente relevantes do século 19, com restauração orçada em R$ 8 milhões, se transformem em equipamentos culturais e educativos para a comunidade.

Certo de que para há salvação e de que existem responsáveis pelo abandono desse patrimônio recém-adquirido pela prefeitura local e sob tombamento municipal, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou inquérito para apurar as causas e buscar saídas. O procurador da República Antônio Arthur Barros Mendes diz que o lugar, onde existem outros prédios, inclusive um gigantesco galpão, abriga um dos mais significativos acervos da memória do país. Depois de vistoria em todo o complexo de mais de 85 mil metros quadrados, ele explicou que, por estar em município pequeno (3,7 mil habitantes) e longe das principais cidades históricas mineiras, “tudo foi relegado ao quase esquecimento pelas autoridades”, quando deveria ser valorizado e preservado como bem cultural, histórico, paisagístico e arquitetônico.

Antigos servidores da Rede Mineira de Viação – que incorporou a Companhia Estrada de Ferro Oeste de Minas (em operação de 1881 a 1931), e depois foi encampada pela extinta pela Rede Ferroviária Federal (RFFSA) – se recordam, com doses de emoção e firmeza, do movimento constante de trabalhadores e de passageiros da linha Ribeirão Vermelho-Barra Mansa (RJ), desativada na década de 1990, para dar lugar ao trem de carga da Ferrovia Centro-Atlântica. A estimativa é de que, na estação, oficina, galpões, rotunda, casa de telégrafo e outras dependências, atuassem, na primeira metade do século passado, mais de 300 funcionários. “Eu era mecânico de locomotivas a vapor, trabalhava dentro da rotunda, o local em que a máquina estacionava para receber manutenção. Com os mecanismos existentes no ponto central, era possível fazê-la girar e depois colocá-la na direção do seu destino: para o sul ou para o oeste”, conta Vitorino Ricardo, de 85 anos, que ficou na empresa de 1947 a 1960.

Com seu jeito calmo e bem mineiro, Vitorino, casado há 48 anos com Dilma Andrade Ricardo, de 77, ainda tem esperanças de que o patrimônio seja restaurado e atenda à comunidade. “Está tudo avacalhado, mas, como continuou de pé e não morreu, tem jeito”, afirma com um sorriso. Ao seu lado, Dilma lembra que a memória da região passa por esses trilhos e imóveis, que começaram a ser edificados no apagar de luzes do Império, em 1888: “Em muitas cidades, há conjuntos bem conservados. Então, poderemos reavê-lo”. Nos seus estudos, o escritor ribeirense Márcio Salviano Vilela, engenheiro agrônomo e músico erudito, verificou que a população atual é a mesma de 1920, auge do transporte ferroviário no município, o que traduz o clima de efervescência de então. “O que está ocorrendo é um crime contra um tesouro de Ribeirão Vermelho”, acredita.

PREDADORES Ao visitar a rotunda que traz, no piso, cerca de 50cm de areia e terra, Vitorino parece voltar no tempo. Num canto, encostado num dos arcos de tijolos aparentes, ele observa um funcionário da prefeitura que começa a encontrar, com enxada e pá, os trilhos centenários sob a extensa camada de entulho. As paredes, de repente, parecem se transformar num imenso retrovisor, que traz de volta os anos passados entre as mais de 30 locomotivas que se encaixavam nos boxes da rotunda, de 74m de diâmetro, para reparos. Ele caminha entre os pilares de ferro com adornos, que também funcionavam como calhas d’água, forjados em Glasgow, na Escócia, vê as telhas importadas de Marselha, na França, e tem noção do charme globalizado ainda presente também no piso da estação, procedente da Alemanha. “A gente trabalhava duro, não tinha moleza. Havia mecânico, torneiro, lenheiro, enfim, muitos mestres no seu ofício”, conta o ferroviário aposentado. Em questão de segundos, as vivências particulares se tornam mais próximas e Vitorino brinca: “Vou ali ver se encontro as minhas ferramentas”.

Mas a vida não girava só em torno dos trens e da família. Um dos xodós dos trabalhadores era o time do Ferroviário, do qual Vitorino, apelidado de Cabrita, era lateral-direito corajoso. Ao se encontrar com o amigo Miguel Rodrigues Patto Filho, conhecido como Guelinho, de 85, a tarde ganha novas recordações e as imagens se tornam mais fortes. “Não há como esquecer um minuto sequer”, acredita Guelinho, que trabalhou na oficina, como torneiro mecânico, de 19 de abril de 1952 e depois saiu para cursar a Escola Profissional, em Lavras, retornando como supervisor.

Desde que as ferrovias entraram em decadência, em meados da década de 1950, para florescimento da indústria automobilística, o prédio entrou no caminho da desolação. “Foi se deteriorando e, como estava sem proteção, os oportunistas e predadores levaram muito material daqui, deixando o resto”, revela Guelinho, também competente jogador do Ferroviário. Corre de boca em boca na cidade que bancos da estação, peças da oficina e da área de manutenção, mobiliário, trilhos, pedras e outros equipamentos sumiram da noite para o dia, deixando um vazio no patrimônio e um buraco na história de Ribeirão Vermelho.

Com arquitetura arrojada para a época, prédio inaugurado em 1895 tem pilares escoceses, telhas francesas e pisos da Alemanha

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