Esta historinha foi escrita para o http://trensdavida.blogspot.com/ , do amigo Tonhão, orgulhoso filho e neto de ferroviários. Seu filho, Ricardo, desenvolveu este “banner" para meu blog. Assim quero, aqui, render aos dois uma pequena homenagem; ao pai, Tonhão, pelo incentivo para eu criar e manter meu blog e ao filho Ricardo pelo bonito “banner” que agora ilustra o Ofício: Contador de Histórias: muito obrigado.
“Ai seu foguista Bota fogo Na fornalha, Que eu preciso Muita força.
Muita força Muita força...”
Sim, era preciso de muita força para alcançar os 1032 metros de altitude, conforme indicava placa de ferro fundido, visivelmente fixada na branca parede da estação de PEDREGULHO. Sim, amigo, é bom repetir: muita força, muita lenha queimada, muita água fervida se transformando na força do vapor, fazendo sair da chaminé negra a nuvem de fumaça branca que se esparramava pelos ares até, logo, ser misturada como uma outra nuvenzinha, e muitas, mas muitas faíscas atiradas ao longo da estrada de ferro, bitola estreita, da Companhia de Estradas de Ferro da Mogiana.
Chegar tão alto exigia força, muita força e é por isso é que a Maria Fumaça chegava bufando, quase parando de cansada na pequena estação. E não era só vencer as alturas, tinha também a longa distância percorrida, pois para chegar á pequena estação de Pedregulho tinha que muito serpentear soltando seus apitos longos e roucos. Sim, coisa de mais de cem quilômetros.
- “Mas como assim?”
Sim senhor, era assim: ela, a Maria Fumaça, saía, diariamente, de Ribeirão Preto, passando pela pequena Brodósqui, depois passava e parava na estação de Batatais, pertinho da igreja com a “via crucis” toda feita com pinturas do Portinari, partia de lá e passava por Restinga, onde minha mãe se casou, para então chegar até a “Franca do Imperador”; ali, na enorme estação, parava para tomar fôlego e aproveitava para apanhar parte dos nossos professores do Ginásio e só depois seguia passando e, também parando, às vezes simplesmente sem ninguém descer ou subir, para nada, mas porque tinha que parar, em Cristais Paulista; daí só mais uma paradinha, onde ninguém podia descer, nem mesmo para necessidades urgentes, pois ali só parava para “beber água” na Chave da Taquara, a uns sete ou oito quilômetros de Pedregulho.
Mas, escuta só, não terminava ali sua viagem, se bem que ela, a Maria Fumaça e eu, certamente, ficaríamos felizes se seu descanso já iniciasse; ela para poder descansar logo e eu para poder tê-la próxima por mais tempo. Mas não era assim: logo partia de Pedregulho, ia embora, passando por Rifaina, já à beira do Rio Grande, passava por Conquista, em Minas Gerais, para chegar, aí,realmente muito cansada, exaurida mesmo, em Sacramento. E era só lá que descansava todo o fim da tarde e a noite, tomando fôlego para o retorno no dia seguinte.
A linha de trem, por onde passava a Maria Fumaça, dividia a cidade de Pedregulho. Havia o “lado de cá da linha” que era maior, onde tinha a igreja, a praça, o campo de futebol, a Santa Casa e o cemitério e o “outro lado da linha”, menor, mas grande o suficiente para formar um time de futebol do “atrás da linha” com quem o nosso time, o “do lado de cá” , jogávamos e, quase sempre, ganhávamos.
Era também na linha de trem que dividia a cidade que ocorriam as brigas, tramadas na hora do recreio no Grupo Escolar ou do Ginásio Estadual, transformando-a em nosso ringue; e era também sobre os trilhos da Mogiana que disputávamos corridas de equilíbrio “sobre os trilhos”: ganhava quem chegasse à frente sem desequilibrar o corpo dos trilhos e não colocasse os pés nos dormentes.
Mas, para precaver a Maria Fumaça dos perigos, penso eu, os trilhos que cortavam a cidade em duas eram protegidos por cercas com seis fios de arame farpado e por uma cerca de ciprestes sempre podados e cuidados pelo pessoal da estrada. Em apenas dois ou três locais, onde a linha atravessava diretamente sobre a rua, sem cerca de arame e sem ciprestes, haviam cancelas que eram fechadas na “hora de passar o trem”; assim, as cancelas fechadas e a sirene ligada impediam que carroças, charretes, cavalos e alguns carros que trafegavam pela da cidade se chocassem com a poderosa Maria Fumaça. Então era assim, protegida de trombadas, que ela passava faceira, soltando fumaça pelas ventas, apitando forte, avisando à cidade que, soberana, havia chegado ou estava indo.
Na plataforma da estação, forrada com limpas e alvas pedras mineiras, eram descarregados os sacos com cerveja e guaraná que vinham de Ribeirão Preto e desembarcavam seus passageiros: alguns desses, esperados por parentes e amigos, ficavam se cumprimentando e se abraçando, matando saudades ali mesmo na plataforma, enquanto outros, como nossos como nossos professores, desciam rapidamente, tirando os guarda-pós que usavam para impedir que a faíscas queimassem seus ternos ou vestidos, e seguiam conversando entre eles até o Ginásio, a uns quatro quarteirões da estação, onde cumpriam a tarefa de nos ensinar.
Mas tem outra coisa que preciso contar... é que nas passagens onde os trilhos atravessavam diretamente sobre a rua havia uma placa com os dizeres: PARE, OLHE, VIVA. Estas placas, e seus dizeres, claro, por um bom tempo me confundiram. O que ocorria é que eu lia e pensava no PARE e no OLHE como formas verbais conjugadas em seu imperativo, enquanto que, não sei porque motivo, lia e pensava o VIVA como uma interjeição expressando felicitação e alegria; aliás, eu chegava a pensar que deveria haver um ponto de exclamação logo após o VIVA. “Assim que der vou perguntar à Dona Tarcila, professora de português se não está faltando o ponto de exclamação” pensava. Mas continuando: toda vez que passava pela placa, olhava e lia com atenção e achava-a louca, meia sem sentido. Explicando melhor, era isso o que se passava dentro de mim: “o PARE, está certo, indica a ação que eu devo parar; o OLHE, também entendo, indica que eu devo olhar antes de atravessar a rua, mas e o VIVA? Será que devo dar pulos de alegria e gritar VIVA! porque o trem não está passando? O VIVA, para mim, tinha o mesmo sentido do HOSANA! de nossas missas. Agora e se fosse para pular e gritar VIVA!, ou mesmo berrar bem alto um HOSANA!, ficava a dúvida de a que horas deveria fazê-lo, se antes ou depois de atravessar a rua. Sei não, há alguma coisa errada nesta placa”, concluía.
Deixando isso para lá! Viagem na Maria Fumaça que mais me lembro? Foi uma que fizemos até Tambaú. Fui com minha mãe e meu pai. Viajamos “de segunda”, em bancos de madeira até a cidade do Padre Donizetti: minha mãe levou frango com farinha, Tia Voca levou requeijão e Dona Alice, nossa vizinha, levou biscoitos de polvilho; no meio do caminho as famílias trocavam as matulas e nós, crianças, ensaiávamos escondidos, pequenos abraços e beijos, nos cantinhos do vagão.
E as paisagens?
Para mim, a mais bela paisagens, a mais esperada era quando o trem voltava de Franca em direção a Pedregulho. Antes de chegar a Cristais Paulista, do alto via-se longe, bem longe, as montanhas de Minas Gerais e um orgulhoso prédio totalmente caiado de branco, isolado de tudo e de todos: era o Mosteiro dos Monges Cistercienses, que hoje em dia está bem menos solitário, já que está cercado por uma pequena comunidade, de nome Claraval. Também não dá também esquecer, nas viagens que fazíamos até Sacramento ou Conquista, quando se passava pela Serra da Rifaina: alta, coberta de aroeiras e ipês amarelos e dela podia-se ver ao fundo o Rio Grande, cristalino, cheio de dourados, bagres, mandis, piaparas e lambaris.
Agora o que não posso deixar mesmo de contar é o que acontecia com a Maria Fumaça na festa de São Pedro, em junho, quando a Igreja Católica organizava uma grande festança. Durante todo o mês de junho, antes da festa do dia 29, orientados por um sanfoneiro da cidade, ensaiávamos a dança da quadrilha, que com o casamento caipira, aconteceria no salão paroquial, antecedendo a reza do “terço” na igreja e a quermesse na praça.
Era uma festa esperada pela cidade.
Em seu dia um caminhão nos levava, os dançarinos da quadrilha, até a Chave da Taquara. Lá tomávamos o trem que realizava aquela parada, como já disse, apenas para abastecer-se de água, mas naquele dia todo especial, nos recebia, fantasiados de caipira, como se não o fôssemos, como passageiros. Lotávamos um vagão para chegarmos, gloriosos, na estação. Ao se aproximar da cidade a Maria Fumaça apitava a todo vapor, o maquinista botava mais água na fornalha para aumentar ainda mais a nuvem de fumaça, e, ao barulho da Maria Fumaça e do seu apito longo, foguetes eram queimados para celebrar a chegada dos noivos e seu séqüito para o esperado casamento e dança da quadrilha...Toda a cidade nos aguardava na plataforma da estação, de onde, ao som da bandinha da cidade e de foguetes e mais foguetes, seguíamos em carroças, todas elas e os pensativos burros que, vagarosamente, as conduziam enfeitadas com papel crepom coloridos, em procissão até o salão paroquial. Era lá que aconteceria o casamento, com o padre usando um balde velho e espigas de milho para jogar água benta para abençoar o povo e os noivos. Logo depois do casamento, e aí para mim era o melhor de tudo, animados pelo som da sanfona do Seu Tião, dançávamos a quadrilha.
Enquanto isso, a Maria Fumaça que não podia ficar para a festa, tinha continuado sua viagem, e àquelas horas, já devia estar descansando em Sacramento.
Era assim.
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