Se obedecesse ao código de conduta que rege a vida real de Sérgio Cabral Filho, o motorneiro Nelson Correa da Silva nem apareceria no emprego na manhã de 27 de agosto. Como vive fazendo o governador do Rio de Janeiro, Nelson poderia ter cabulado o trabalho com uma desculpa qualquer, para desfrutar do dia de folga na casa de algum amigo que lhe garantisse comida, pouso e companhias agradáveis. Em vez disso, foi fazer em seu último sábado o que fez durante 35 dos 57 anos de vida: conduzir um dos bondinhos que desde o fim do século 19 sobem e descem as ladeiras de Santa Tereza, no coração da cidade.
Se tivesse um caráter em frangalhos como Júlio Lopes, Nelson teria sido o primeiro a cair fora quando o mecanismo do freio entrou em colapso. O comportamento do secretário de Transportes retrata uma figura capaz de escapulir do navio na iminência do naufrágio antes que os ratos do porão desconfiem do perigo. O motorneiro morreu tentando diminuir as proporções do desastre, pedindo aos gritos que os passageiros saltassem para a salvação. Se estivesse entre eles, Júlio Lopes não hesitaria em atropelar bebês de colo, idosos entrevados ou mulheres grávidas para prolongar a boa vida. Como o capitão Edward J. Smith, Nelson permaneceu em seu posto até o fim. O bondinho n° 10 era o seu Titanic.
Se não fosse desprovido da generosidade esbanjada pelo motorneiro ─ um dos cinco mortos no acidente que provocou ferimentos, fraturas e lesões graves em outros 57 passageiros ─, Júlio Lopes teria encaminhado um pedido de perdão às vítimas assim que soube da tragédia. Foi ele quem impôs a penúria crônica ao transporte sobre trilhos de Santa Tereza. Foi ele quem fechou a torneira de verbas para serviços de manutenção. Em vez de pedir demissão imediatamente, o secretário tentou culpar pelo desastre o motorneiro conhecido pela prudência. (Num vídeo gravado em fevereiro por um cinegrafista amador, Nelson aparece jogando areia nos trilhos, para aumentar o atrito com as rodas e encurtar o tempo da freada.)
Se não fosse desprovido da bravura esbanjada pelo condutor, já no sábado Cabral teria demitido Júlio Lopes por inépcia e comparecido ao enterro de Nelson. Em vez disso, entregou o caso à assessoria de imprensa e perdeu a voz por quatro dias. Se soubesse o que é compaixão, teria recriminado publicamente o secretário que, ao culpar o morto, merecia ser punido por tentativa de assassinato moral. Em vez disso, endossou a discurseira malandra de Júlio Lopes: infelizmente, recitou a dupla, há muitas prioridades a atender.
No ranking das urgências administrativas, os bondinhos de Santa Tereza aparecem alguns anos-luz distantes de monumentos ao desperdício como a reforma do Maracanã, que já promete engolir mais de R$ 1 bilhão. Estão centenas de posições abaixo dos contratos sem licitação forjados para tirar do papel as “obras de mobilidade urbana” requeridas pela Copa da Roubalheira e pela Olimpíada da Ladroagem. Vêm muito depois do metrô da Barra que a turma prometeu para Pan de 2007. Os bondinhos são bem menos prioritários que o teleférico do morro do Alemão, escala obrigatória nas visitas de Dilma Rousseff ao Rio de Janeiro.
Neste fim de semana, a missa de 7° dia reuniu dezenas de amigos de Nelson Correa da Silva. De novo, eles exigiram que o governador batize a estação do Largo da Carioca com o nome do motorneiro morto e demita Júlio Lopes. A primeira reivindicação talvez seja atendida. A segunda é mais complicada. O secretário sabe muita coisa. Conhece, por exemplo, os motivos que levam o governo estadual a torrar boladas multimilionárias nas obras encomendadas à construtora Delta, do amigo Fernando Cavendish, e negar aos bondinhos o pouco dinheiro que bastaria para livrar condutor e passageiros da insegurança e da morte.
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