Fonte: ANPF - Associação Nacional de Preservação Ferroviária
Apresentação:
O segundo Artigo deste mês de Fevereiro, trata de outro relato de Carl von Koseritz em 1883, só que desta vez entre o Rio e Petrópolis. Trata-se de um texto interessante, pois esta viagem foi feita pouco tempo depois da linha entre Raiz da Serra e Petrópolis ser inaugurada, sendo que ele ainda percorreu um trecho da Estrada de Ferro Mauá. Carl von Koseritz era um imigrante alemão, residente no Rio Grande do Sul e que por um curto espaço de tempo chegou a morar no Rio de Janeiro. Em meados da década de 1850 veio a se tornar jornalista, tendo lançado o seu grande jornal em 1864: "Koseritz Deutsche Zeitung", onde em 1883 ele publica o relato de sua viagem. Em 1885, este texto, juntamente com outros veio a ser publicado em livro na Alemanha, com o título de "Bilder aus Brasilien", que foi mais tarde traduzido e publicado no Brasil com o título de "Imagens do Brasil".
Sem dúvida é um belíssimo texto de Carl von Koseritz, que também fez um fantástico relato de uma viagem entre o Rio e São Paulo de Trem em 1883. A segunda parte deste Artigo, é um interessantíssimo relato de uma viagem entre o Rio e Petrópolis, só que em 1963, cerca de 80 anos depois, pouco tempo antes do trajeto ser erradicado. É com grande felicidade que compartilho este texto com vocês, para que vocês possam viajar nos trilhos da memória...
Christoffer R.
Webmaster - ANPF
Fevereiro de 2004 - N.º 16
Textos de Carl von Koseritz e R.E. Jones
O Sesquicentenário da Ferrovia no Brasil - IV
Viagens entre o Rio e Petrópolis
2003-2004 - 150 Anos da Ferrovia no Brasil
Uma viagem entre o Rio e Petrópolis em 1883
Texto de Carl von Koseritz
A 8 deste mês pelas 3 horas da tarde, achava-me, com o amigo Jansen, a bordo do Vapor que conduz os passageiros através da baía até Mauá. Eu tinha audiência com o Imperador em Petrópolis e, com isto, poderia conhecer a famosa residência de verão da Côrte, Tusculum (Lugar de vilegiatura, para os ricos da antiga Roma) da aristocracia local e retiro do nosso mundo diplomático. Os navios são do sistema Ferry, muito amplos e providos de boas comodidades; a única diferença é que eles possuem refeitório e uma excelente cozinha. Parte-se da Prainha, e toma-se a passagem até Petrópolis. O senhor Lucas, autêntico nativo da Mosela, que reside em Petrópolis desde 1846, onde é famoso como cozinheiro e guia de estrangeiros, assumiu da forma a mais amável o cuidado das nossas bagagens e eu pude me entregar completamente ao gozo do soberbo panorama oferecido pelo Porto do Rio. À nossa direita estavam, no alto do morro, o Convento dos Beneditinos, a Ilha das Cobras com as suas docas e estaleiros, o grande Arsenal da Marinha, com suas numerosas Oficinas; à esquerda os navios mercantes, no chamado “poço”, e, diante de nós, os gigantescos vapores das linhas transatlânticas. Ali se achava, por exemplo, o “Gironde”, pronto para partir e não era sem uma certa tristeza que eu via o palácio flutuante que, em menos de um mês, poderia conduzir-me à “clara polidez da Europa” e os braços de alguns entes caros de que já me encontro afastado há 33 anos, espaço de uma vida humana. Mas isto não adianta e eu já aprendi a declinar a palavra “paciência” em todos os seus casos. Passemos, porem, diante do “Gironde” e abandonemos as idéias as idéias tristes; o homem pertence ao momento e este nos conduz a Petrópolis, e à residência do Imperador.
Acima podemos ver um barco atracado no Porto Mauá em ano desconhecido, provavelmente na época da Estrada de Ferro Leopoldina. À direita, podemos ver um trem estacionado, e grande movimentação de passageiros. Foto: (?). Abaixo, vemos o mesmo Porto Mauá, só que já desativado, sendo iniciado o lento processo de degradação que continua até os dias atuais. Ao fundo, à esquerda do cais, podemos ver a Estação de Guia de Pacobaíba. Esta foto provavelmente foi tomada entre a década de 50 e 60. Foto da Coleção de Alfredo Ferreira Rodrigues, de Pelotas-RS.
Fabricada em 1852 na cidade de Manchester, Inglaterra, a "Baroneza" funcionou na Estrada de Ferro Mauá até ser oferecida ao Governo Imperial pela Companhia Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará em 18 de Fevereiro de 1884. Foto publicada no Catálogo do Centro de Preservação Ferroviária do Rio de Janeiro/Engenho de Dentro/1983/Preserve/RFFSA.
A viagem pela baía é linda; as ilhas do Governador, Paquetá e todas as demais oferecem aos olhos belíssimos cenários, em contínuo movimento. Os últimos momentos da travessia foram perdidos, para mim, no que diz respeito à vista, pois o amigo Jansen, com apetite devorador, reclamou peixes e outras miudezas, que nos foram servidas realmente na melhor forma. Ainda não tínhamos engolido o último bocado e já estávamos chegando ao pequeno Porto de Mauá, de onde a Primeira Estrada de Ferro construída no Brasil, (que tem o nome do seu fundador, o Visconde de Mauá), nos devia conduzir até à Raiz da Serra, exatamente em baixo da escarpada parede rochosa da Serra dos Órgãos, em cujo platô se encontra Petrópolis. A Estrada é excelente; os trilhos se acham sobre dormentes de ferro e viaja-se como numa cadeira de balanço. Os vagões são grandes e largos, muito cômodos; tudo é confortável, e a velocidade da viagem surpreende, quando se está habituado à ridicularia da nossa Estrada Leopoldense. Em grande velocidade atravessamos a parte baixa, pantanosa e insalubre, onde grassa sempre a febre palustre e logo entramos na estação de Irajá (Engano do Autor. A linha que ia de Mauá à Raiz da Serra não passava por Irajá), de onde, em cerca de 15 minutos se vai à simpática aldeia de Raiz da Serra.
Aqui temos uma Locomotiva da Estrada de Ferro Príncipe do Grão Pará, construída para funcionar no sistema de Cremalheira Riggenback, entre a Raiz da Serra da Estrela e Petrópolis. Foto: (?)
Devo acentuar que não foi sem uma sensação de medo que divisei a negra parede montanhosa, alta de 800 metros, que se elevava abruptamente, e cujos cumes estavam coroados de nuvens. E nós devíamos subir, por estrada de ferro, até lá em cima, no meio das nuvens. Eu tinha uma certa dúvida sobre se chegaríamos com os ossos completos lá no alto dos morros, naquela Cidade de Nuvens... (Expressão de duplo sentido. Em alemão “Cidade de Nuvens” quer dizer utopia) Lá estava, contudo o trem e centenas de passageiros se ajuntaram nos grandes e elegantes vagões, com duas ordens de assentos duplos, segundo o sistema americano. O que os outros podem, também nós podemos, e, assim, logo nos encontramos muito comodamente instalados em um vagão de primeira classe. Pouco depois o monstro da locomotiva começou a soprar e fazer barulho, lançou um estridente apito e foi morro acima, sempre em ladeiras de 15 por cento. No entanto esta colossal subida era dominada por uma máquina, (que era das mais fortes), não com facilidade, mas, em todo caso, era dominada. As máquinas ficam atrás dos trens e os empurram serra acima com força gigantesca, sustentadas por cremalheiras e rodas denteadas. E agora subimos sem cessar: rochedos selvagens, florestas escuras, grandes precipícios nos cercam; mas o nosso trem progride sempre e vence todos os obstáculos. Súbito abre-se para nós uma bela vista sobre o vale onde fica a Raiz da Serra. Ao nosso lado, freqüentemente cortada pela estrada de ferro, corre em curvas caprichosas a Estrada de Rodagem “União e Indústria”, pela qual se fazia antigamente o tráfego por diligências, único existente para Petrópolis. Também esta Estrada, que vai até Entre-Rios, é uma verdadeira obra de arte e custou milhões; antigamente ela foi uma espécie de maravilha do mundo para o Brasil, mas hoje desaparece ao lado do poderoso trabalho do caminho de ferro, que o sr. Taaffe construiu como empreiteiro, depois de vencer enormes dificuldades.
Um trem subindo a Serra rumo a Petrópolis, composto da Locomotiva do sistema Cremalheira, de N.º 13 com dois Carros de passageiros. Foto publicada no Livro "O Vapor nas Ferrovias do Brasil", de Benício Guimarães. Coleção: Manoel Marcos Monachesi. Cortesia: Jorge Alves Ferreira Jr., Juiz de Fora-MG.
No meio da subida se encontra a antiga fábrica de papel do barão de Capanema, outra empresa bandonada. Está lindamente situada, e atrás dela se levantam os rochedos dos Órgãos em plena nudez, o que não é inconveniente para um rochedo. E a máquina geme cada vez mais alto e cada vez mais longe se esgueira o trem pelas montanhas acima, por entre os gigantescos rochedos. Cada vez mais se aproximavam os cumes dos montes, que antes me pareciam inatingíveis e cada vez mais perto chegávamos nós do manto de nuvens. Os precipícios dos dois lados estavam mais negros, selvagens torrentes de montanha saltaram em baixo sobre as pedras: é um cenário majestoso. Finalmente chegamos à Cidade das Nuvens, isto é, no alto da serra e no meio de uma névoa que não nos deixava ver um palmo adiante do nariz. O caminho vai agora em nível, o Trem corre mais depressa e a Máquina geme menos alto. De repente, um apito: estamos na Vila Teresa, isto é, chegamos ao Palatinado. Aí desatrelamos, ou melhor, a máquina que nos empurrou tinha cumprido o seu dever e podia se afastar; foi ligada uma outra na frente que nos fez seguir viagem a toda velocidade. Diante de nós se estendia o bonito vale do Palatinado, com a suas casas de colonos. Louras crianças brincavam diante delas, carros alemães conduziam frutas, mulheres alemãs voltavam do trabalho. Senti-me em casa. Sãos os meus bravos camponeses do Rio Grande, pensei de mim para comigo e gritei-lhes do trem um “boa parte!” Mas já está tocando o sino: chegamos À Estação da Cidade Imperial e saltamos. Esta é uma verdadeira Cidade Imperial, uma cidade de palácios... Uma população elegante se acotovela na Estação; ligeiros “cabs”, puxados por cavalos de raça, são guiados por senhoras; esbeltos cavaleiros caracolam sobre lindos meio-sangues, seguidos por servidores agaloados. Mais adiante está o Carro Imperial de seis cavalos. Nele se encontram o Imperador e a sua família.
Mas já escurece, e não nos resta tempo para ver tudo. Tomamos um carro e partimos rapidamente para o grande Hotel Bragança (Hoje desaparecido. Era situado na antiga rua do Imperador, atualmente 15 de Novembro), onde reservamos quarto e, em seguida, nos apressamos em ir jantar com o Comendador Frederico Roxo, em cuja casa morava o genro de Jansen e onde estávamos sendo esperados. Um finíssimo jantar, um serviço brilhante, uma conversa cheia de espírito, - coração, que mais queres?
Assim passaram rapidamente as horas, e já eram as 11 quando subimos no carro e voltamos para o hotel, onde procuramos a nossa cama, afim de nos repousarmos para as dores e alegrias do dia seguinte.
Rio, 10 de Maio de 1883
Foto da Estação de Petrópolis. É interessante citar que o Imperador, D. Pedro II, às 5 e meia da tarde, ia, de carro, até a Estação com sua comitiva observar a chegada do Trem. Lá, ficava parada a sua carruagem, até que chegasse o comboio. Era comum na época, ele fazer esse passeio até à Estrada de Ferro todas as tardes quando ele estava em Petrópolis. Com a Família (Imperatriz, Princesa Isabel, Conde D'Eu, netos), quando fazia um bom tempo; sem ela, quando chovia. Foto do Arquivo Histórico do Museu Imperial, publicada na Edição Especial da Tribuna de Petrópolis 100 anos (1902 - 2002). Coleção: Manoel Marcos Monachesi. Cortesia: Jorge Alves Ferreira Jr., Juiz de Fora-MG.
Na manhã seguinte (Dia ?) tomei ainda (a 10º R) um banho de chuveiro magnificamente refrescante, em seguida tomamos café e tocamos para a Estação. No carro encontrei Quintino Bocaiúva, meu velho colega, o príncipe dos jornalistas brasileiros, com o qual me tenho tido de haver várias vezes, em boas e más circunstâncias. Alegramo-nos ambos de, afinal, nos podermos conhecer pessoalmente, tomamos juntos um coupé, e logo nos perdemos numa conversa sobre as condições locais da imprensa, que são, aliás, bastante tristes. Vamos novamente Serra abaixo. Em Vila-Teresa encontramos, outra vez, o monstro ofegante, a Locomotiva de montanha, que, na viagem de descida, em vez de empurrar, apóia, e impede, tanto quanto necessário, a marcha do Trem. Na verdade não é nenhuma viagem tranqüilizante, mas desde Janeiro que ela é feita diariamente por duas vezes, sem qualquer acidente. Daí a pouco estávamos de novo em Raiz da Serra, deixando atrás de nós a escarpada parede de montanhas. Ainda uma curta viagem pela Estrada de Ferro Mauá, e o vapor nos recolheu novamente, para nos conduzir ao Rio, cujos contornos já se mostravam, diante de nós, por entre a névoa. Estava de novo quente, transpirava-se apesar da brisa marinha, depois de termos estado em Petrópolis a 10º R. Como eu devia ir ao Ministério depois da nossa chegada, almoçamos a bordo, aliás, muito satisfatoriamente. Depois do almoço entretive-me, ainda, um pouco, com os Srs. Kinglelhofer, Quintino Bocaiúva e o mordomo do Imperador, Conselheiro Archer e, dentro em pouco, desembarcamos na Prainha. O Rio nos recebia com o seu mau cheiro, particularmente sensível naquela parte suja da cidade. Estavam acabados os belos dias de Aranjuez-Petrópolis....
Rio, 12 de Maio de 1883
É sabido que a viagem de ida até Petrópolis, foi feita no dia 08 de Maio de 1883, mas a data da volta é muito imprecisa. Provavelmente se deu entre o dia 10 e 12 de Maio.
Locomotivas do sistema Cremalheira estacionadas no Pátio de Inhomirim, onde se iniciava o trecho de Serra da antiga Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará. Foto do Arquivo do Preserfe, publicada no Livro "O Vapor nas Ferrovias do Brasil", de Benício Guimarães. Coleção: Manoel Marcos Monachesi. Cortesia: Jorge Alves Ferreira Jr., Juiz de Fora-MG.
Quem foi Carl von Koseritz
Carl von Koseritz nasceu em Dessau, na Alemanha, em 1830 e faleceu repentinamente, no Rio Grande do Sul, a 30 de Maio de 1890. Deixando pais e irmãos na terra natal, partiu Koseritz para o Brasil, com apenas 21 anos de idade, engajado na qualidade de canhoneiro do 2.º Regimento de Artilharia, na tropa mercenária organizada por Sebastião do Rêgo Barros, para o serviço do Império. Passou, com seus companheiros, alguns dias no Rio, na caserna da Praia Vermelha, hoje desaparecida, e embarcou em seguida, para o Sul, de onde só deveria voltar 32 anos depois, já transformado na principal personalidade da colônia alemã e num jornalista e político que desfrutava de grande prestígio, mesmo fora dos círculos alemães. A viagem para o Sul foi péssima, e o velho barco em que iam os rapazes quase se perde nos baixios traiçoeiros da costa. Mas a nova pátria que tão hostilmente os recebia dentro em breve seria, para Koseritz, tão amada quanto a velha, que deixara mortificado de saudades. Com efeito o seu amor pelo Brasil foi sincero e grande e transparece claramente nas páginas escritas em seu livro, apesar da crítica, por vezes cruel, que defere contra os homens e as coisas do Império.
FONTES BIBLIOGRÁFICAS
KOSERITZ, Carl von. Imagens do Brasil. Tradução de Afonso Arinos de Mello Franco. 1941. Biblioteca Histórica Brasileira, Livraria Martins Editora. Texto Original "Bilder aus Brasilien", editado na Alemanha em 1885. (Transcrição)GUIMARÃES, BENÍCIO. O Vapor nas Ferrovias do Brasil. Editora Gráfica Jornal da Cidade Ltda. Petrópolis-RJ, 1993.SIQUEIRA, Edmundo. Resumo Histórico de The Leopoldina Railway Co. Ltd.Tribuna de Petrópolis. Edição Especial de 100 anos (1902 - 2002).
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