19/01/2013 - O Estado de S. Paulo
Quase todos têm celular, usam cabelos tingidos de vermelho ou loiro, calçam sandálias Crocs, vestem camisas de times de futebol (a maioria do São Paulo) e têm perfil no Facebook. Apesar disso, os moradores da aldeia guarani Tenondé Porã, no extremo sul da capital paulista, são proibidos de se casar com brancos e de falar português entre eles - uma forma de blindar a comunidade, que vive há 30 anos em Parelheiros.
Nos últimos tempos, a preocupação da comunidade ganhou novos ingredientes: a de ser esmagada pela expansão das obras de infraestrutura. Rodeada de um lado pelo Rodoanel Sul e de outro por uma ferrovia que vai até Santos, a aldeia tem 26 hectares demarcados como área indígena. Ali, moram 1.100 pessoas, que exigem compensações sociais para autorizar novas obras. Foi assim com a construção do Rodoanel e agora com a duplicação de 383 quilômetros (km) de ferrovia entre Itirapina e Santos, administrada pela América Latina Logística (ALL).
Um trecho do empreendimento, de R$ 535 milhões, passa pela área indígena - embora a ferrovia exista antes mesmo da formação da aldeia no local. A obra já tem licença prévia, mas por causa das complicações com a comunidade não consegue a licença de instalação. Tupã Mirim, nome indígena de Osmar Veríssimo, que significa guardião do trovão, conta que hoje a comunidade é esquecida pelos governos. "Não temos apoio para nenhum projeto de desenvolvimento econômico, cultural ou humano. Faltam políticas públicas para o povo indígena."
Desde o fim do ano passado, os líderes da aldeia Tenondé Porã estão em constantes negociações com a ALL para a liberação das obras. Os acordos têm sido mantidos sob sigilo. Nem a empresa nem as lideranças gostam de falar sobre os pontos em discussão. Em dezembro, houve uma audiência pública para tentar fechar algumas ações. Além dos indígenas e de executivos da empresa ferroviária, estiveram no encontro representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) - a presença da reportagem na audiência pública foi proibida.
Algumas semanas mais tarde, depois de muita insistência, os líderes da aldeia Tenondé Porã receberam a reportagem do Estado e anteciparam algumas reivindicações. A exemplo de outras obras de infraestrutura, como as hidrelétricas de Belo Monte, no Pará, e Teles Pires, em Mato Grosso, as comunidades aproveitam as grandes obras para conseguir alguma visibilidade e melhorias no dia a dia.
Caminhando pelos Trilhos - Foto: Estadão |
Para liberar as obras, os indígenas da Tenondé Porã pediram a criação de uma cooperativa para a comercialização de seus produtos, como pulseiras, brincos, colares e objetos musicais. Ainda hoje essa é uma das principais atividades e fonte de renda dos moradores da aldeia. Alguns poucos conseguem emprego na cidade, como auxiliar de limpeza, afirma Tupã Mirim.
Ele conta que os moradores também solicitaram ajuda para reformar as casas de alvenaria, construídas em 2004 pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) para substituir as ocas de madeira e palha. A maioria das residências está em más condições de conservação, com goteiras no telhado e buracos nas portas e janelas. Por fim, Tupã Mirim conta que a comunidade pediu três caminhonetes para auxiliar na locomoção dos moradores. Os veículos seriam usados por todos os indígenas, em situações de emergência.
Ele explica que no caso do Rodoanel várias promessas foram feitas e quase nenhuma cumprida. "Diziam que não haveria impacto para a aldeia. Mas tudo, mesmo que indiretamente, afeta a nossa população. Essas obras trazem mais gente para a região. Alguns trabalhadores acabam ficando por aqui. Estamos perdendo espaço."
No caso da ferrovia, ele afirma que a expansão vai afetar diretamente o dia a dia dos indígenas, que apesar de estarem na maior cidade da América do Sul, ainda preservam os hábitos dos ancestrais. Regularmente, eles atravessam a linha do trem para caçar e buscar matéria-prima para confeccionar os artesanatos na mata. "A estrada de ferro está no meio do caminho."
Capacidade. A duplicação do trecho ferroviário entre Itirapina e Santos faz parte da parceria firmada em 2009 entre a ALL e a Rumo, empresa de logística do grupo Cosan. Hoje, dos 383 km de extensão, apenas 91 km estão concluídos. Trata-se dos trechos entre Canguera e Embu-Guaçu e do percurso da serra - ambos em operação. O lote que vai de Campinas a Embu está em obras e outros dois trechos aguardam licença de instalação, informou a empresa por meio de nota.
Quando concluídas, as obras vão elevar em 30% a capacidade de transporte de grãos e açúcar na malha paulista num tempo 25% menor que o atual. Na prática, além de representar menores custos para as empresas produtoras, a ampliação também trará benefícios para a população de São Paulo. A expectativa é que a duplicação da estrada de ferro retire das rodovias do Estado 1.500 caminhões por dia.
Outro benefício será sentido no Porto de Santos, o maior da América do Sul. Hoje um dos principais gargalos do estuário é o acesso terrestre. Apenas 10% dos granéis chegam ao porto por meio de ferrovias. Para a Rumo Logística, a duplicação da ferrovia significará elevar de 2 milhões de toneladas para 9 milhões de toneladas por ano de açúcar que será transportado pela ALL até o Porto de Santos.
Na aldeia Tenondé Porã, no entanto, os benefícios ainda são dúvida, avalia Tupã Mirim. Entre baforadas de cachimbo, ritual feito sempre que entra na mata, ele fixa o olhar nas dezenas de vagões puxados pela locomotiva da ALL como se pedisse algo aos deuses. E emenda: "Imagina quando aumentarem a velocidade dos trens".
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