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A ferrovia levou água mineral para a inauguração de Brasília
Para as gerações pós 1960, acostumadas com o transporte feito essencialmente sobre o asfalto, é difícil imaginar que, durante mais de um século, o crescimento do Brasil, e também de Minas Gerais, era feito essencialmente pelos trilhos. Parte dessa história tem na Viação Férrea Centro-Oeste um dos seus capítulos mais expressivos.
Os vagões transportavam produtos agrícolas para Goiás, bois e suínos para o Rio de Janeiro, café para o Porto de Santos e até água mineral vinda do Sul de Minas. Ainda sobre os trilhos, era possível ir para a Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e até para o Planalto Central, para visitar Brasília. "Cerca de 90% das ferrovias de Minas Gerais eram integrantes da Centro-Oeste", destaca o engenheiro civil ferroviário Ricardo Resende Coimbra, que lançou o livro "Uma Viagem pelos Trilhos da Centro-Oeste: 120 anos de história".
Coimbra, que trabalhou na Rede Ferroviária Federal (RFFSA), passou três anos pesquisando sobre o tema. De acordo com o engenheiro ferroviário, a formação da Centro-Oeste ocorreu após a fusão de diversas estradas de ferro. "Reuni a história das ferrovias que originaram a Superintendência Regional de Belo Horizonte, especialmente as ferrovias que compuseram a 5ª Divisão Operacional Centro-Oeste, em 1969. Nesse trabalho, descobri histórias que estavam perdidas", diz.
A Viação Férrea Centro-Oeste passou a usar esse nome em 1965 e somava domínios da Rede Mineira de Viação (RMV), com um trecho conhecido como Bahia-Minas, e a Estrada de Ferro Goiás. Nos últimos anos de atuação desta ferrovia, relata Coimbra, ela foi integrada com parte da Estrada de Ferro Central do Brasil, formando a RFFSA, que tinha a Superintendência de Belo Horizonte.
Parte dessa história começou em 1872, quando foi criada a Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM) pela Lei 1.914. "Depois dessa lei, um dos primeiros pontos a entrar em funcionamento nessa estrada foi em São João del- Rei, em 1881", aponta Coimbra, no livro. Na ocasião, a disputada inauguração do empreendimento, na Região do Campo das Vertentes, contou com as presenças reais de Dom Pedro II e da imperatriz Tereza Cristina, além de vários ministros.
Na época, a importância do investimento em linha férrea foi apontada em um dos jornais locais, denominado o "Arauto de Minas", que descreveu o "dia feliz" de sua inauguração, com gramática usada na época. "Inaugurando-se a importante ferrovia, que liga S. João d'El-Rei ao centro da civilização nos coloca à vanguarda dos povos adiantados, trabalhando na longa estrada do progresso".
O autor informa que nos vagões da EFOM eram transportados cereais, cal, toucinho e, para não fugir da indispensável demanda mineira, até queijos.
Linhas às margens do Rio das Mortes
Mesmo com o entusiasmo inicial, Coimbra relata que durante o primeiro ano de tráfego, o trecho que passava por São João del-Rei teve prejuízos financeiros em virtude de fortes chuvas. Por serem construídas às margens do Rio das Mortes, essas linhas foram atingidas pelas enchentes.
Segundo o autor do livro, em 1799 os bandeirantes se instalaram onde existia ouro em Minas Gerais. Nessa mesma época, foram marcados trechos para o tráfego, sendo que, na maior parte das vezes, essas áreas margeavam rios. "E foi acompanhando os rios que as ferrovias nasceram", diz.
O costume de construir linhas férreas ao longo do curso dos rios ainda provocava prejuízos para o transporte ferroviário no início do século passado. De acordo com Coimbra, em 1906 há registros de enchentes invadindo linhas, como é o caso do Rio das Mortes, em São João delRei, ao lado do qual seguia uma estrada de ferro por 222 quilômetros - desses, 163 ficaram submersos. Na publicação, Coimbra informa que em alguns pontos as enchentes chegaram a quatro metros acima dos trilhos.
Com os anos, a estação de São João del-Rei, que já nasceu com importância, começou a ter atuação cada vez mais expressiva dentro dos domínios da Centro-Oeste. O movimento na região estava ligado à exportação e importação de produtos. Para dar suporte a essa demanda, foram construídos galpões para depósitos, ferraria, oficinas e a curiosa "rotunda", que existe até hoje e está aberta à visitação. Ela é um tipo de oficina em formato circular destinada à manutenção de locomotivas e vagões.
Em São João del-Rei, parte do patrimônio, incluindo a rotunda, foi mantida. Hoje, a região possui o trem turístico que liga esta cidade a Tiradentes, em um percurso aproximado de 12 quilômetros. Em Ribeirão Vermelho, no Sul de Minas, ao contrário, há uma rotunda, que é considerada a maior da América Latina, mas que hoje está em ruínas.
Segundo informações do vice-prefeito de Ribeirão Vermelho, Tadeu Cantão, o município está realizando esforços junto ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) e empresas para a reforma do local, mas as obras ainda não têm previsão para começar. "O município, sozinho, não tem condição de arcar com essa obra", diz.
Prédios em ruínas em cidades de MG
"O prédio ainda está de pé, mas sofreu com muitas enchentes e boa parte da cobertura de telhas francesas está comprometida", descreve Eliane Batagini, que colaborou com as pesquisas do livro. Eliane trabalhou na RFFSA como analista de recursos humanos e, assim como o autor, com quem é casada, também conheceu a história da Centro-Oeste. "A gente não tem veias. Tem trilhos pelo corpo. É uma paixão muito grande pelo tema, e o livro traz essa história para a atualidade", diz Eliane.
Ela conta que percorreu cidades, juntamente com o marido, e, nessas viagens, se deparou com ruínas de outras belas estações e prédios usados nas atividades das ferrovias. "Chegamos a chorar diante dessas situações. Aqui em Lavras, por exemplo, onde moramos, o estado da estação é degradante", lamenta.
"Daqui de Lavras, com os trens, era possível ir para a praia no Rio de Janeiro com apenas uma parada em Barra Mansa", conta Ricardo Coimbra. O autor explica que a ferrovia na cidade em que vive, no Sul de Minas, surgiu em 1889, por meio de um decreto estabelecido para que Ribeirão Vermelho e Lavras fossem ligadas pelas linhas. Em virtude da construções de vários novos trechos ligados à cidade, a estação local precisou ser ampliada.
Em 1931 foi criada a Rede Mineira de Viação (RMV). Ela era a soma das estradas de ferro Oeste de Minas e Sul de Minas. Um prédio histórico de uma das estações ainda pode ser admirado em Belo Horizonte, na Rua Sapucaí, próximo à Estação Central do metrô. "A rede transportava pessoas e todo tipo de mercadoria. Café, sal, bovinos, suínos vivos para várias regiões", informa Coimbra.
Boiadeiros em comitiva sobre os trilhos
O ferroviário aposentado Roberto Sbampato Pereira trabalhou na RMV e se aposentou pela RFFSA. Hoje, ele é estudioso sobre o tema das ferrovias, e também lembra da época do auge ferroviário. "Aqui (em BH) na Estação do Horto Florestal, havia um desvio para fazer baldeação do gado que ia para o Rio de Janeiro. Os animais vinham de Montes Claros, no Norte de Minas", conta.
Para cuidar dos animais na comitiva sobre os trilhos, seguiam boiadeiros, que nas estações, davam água e milho para o gado. "Eles faziam uma cama no carro da calda (último vagão) para dormir durante a viagem", descreve.
Uma das incorporações da Centro-Oeste foi a Estrada de Ferro Goiás. Esse trecho foi levado até o Estado, inicialmente em 1907, sob a motivação do transporte de produtos agrícolas, como cereais, milho e açúcar. A última expansão da ferrovia nesta direção foi para Brasília, em 1960. "Os trilhos precisavam chegar na nova capital, mas isso aconteceu apenas em 1968, quando atingiu a Estação Bernardo Saião, que é próxima à capital", observa.
A ferrovia só chegou mesmo em Brasília em 1981, pelo Terminal Rodoferroviário, que recebia ônibus e trens. "Essa estrada nascia em Formiga, na Região Centro-Oeste de Minas, e ia até Araguari, no Triângulo, o que dava uma distância de cerca de 400 quilômetros. Mesmo em território mineiro, ela pertencia à Estrada de Ferro Goiás. O trecho foi encampado pela Ferrovia Oeste de Minas por ordem do Governo federal", lembra Sbampato.
Umas das passagens mais curiosas registradas pelo livro do engenheiro ferroviário vem dos anos 1960. Conforme relata, para a inauguração de Brasília foram encomendados carregamentos de água mineral de São Lourenço, que seguiram até a capital federal pelos trens.
Tanto Coimbra, quanto Eliane admitem que os tempos da economia essencialmente sobre trilhos em algumas cidades já passou, mas eles apontam uma tendência, que tem sido muito bem aceita: passeios turísticos de trem. "Eles estão pipocando por todo o país. Aqui, por exemplo, temos o circuito turístico de Furnas e da Estrada Real. Essa questão econômica não está tão esgotada assim", avalia Eliane Batagini.
Informações sobre ferrovias: http://viagemnostrilhos.blogspot.com
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