Essa foi a definição do governo federal ao novo modelo do setor ferroviário de cargas, anunciado recentemente junto às novas concessões rodoviárias, criação da Empresa de Planejamento e Logística – EPL e, claro, a construção de 12 novos trechos ferroviários, totalizando 10 mil km de novas ferrovias e investimento estimado R$ 91 bilhões.
Ainda constava da apresentação de lançamento do Programa de
Investimento em Logística, o seguinte detalhamento do que se chamou
“modelo de PPP”: “governo contrata a construção, a manutenção e a
operação da ferrovia”; “VALEC compra a capacidade integral de transporte
da ferrovia”; e “VALEC faz oferta pública da capacidade, assegurando o
direito de passagem dos trens em todas as malhas, buscando modicidade
tarifária”.
Essa descrição, antes de tudo, é um resumo pontual do que se pode
chamar modelo open access de operação ferroviária. Por outro lado, este
esboço de um modelo não descreve uma Parceria Público-Privada em sentido
estrito, ou seja, no sentido dado pela Lei nº 11.079/04.
Atualmente, o setor ferroviário brasileiro atua no que se costuma
chamar modelo de integração vertical da operação ferroviária. Nesta
estrutura, boa parte da operação ferroviária decorreu da concessão, na
década de 1990 (especialmente entre 1996 e 1998), dos trechos
ferroviários que eram administrados e explorados pela extinta Rede
Ferroviária Federal S.A. – RFFSA. Em linhas gerais, este modelo de
exploração concentra a instalação (quando necessária) e administração da
linha férrea, bem como a prestação dos serviços de transporte
ferroviário, em um único agente, que no caso brasileiro são as
concessionárias de cada uma das 12 malhas concedidas.
Discussões em cima deste modelo não faltam, algumas decorrentes da
monopolização da malha ferroviária e suas consequências, outras da
atividade nem sempre expressiva da ANTT na regulação e fiscalização dos
serviços. Países como EUA, Canadá, Austrália, Rússia, China, Índia e
África do Sul adotam modelos semelhantes.
O que o governo federal pretende fazer?
Após o anúncio das novas linhas férreas, o governo deixou claro que
tais novos empreendimentos serão operados em modelo distinto do que se
faz na malha existente. O modelo é o chamado open access e conta com a
adesão de países como Alemanha, Espanha e o Reino Unido. Nesse modelo,
administração da linha e serviços de transporte ferroviário são
segregados, sob o principal argumento de promover a competitividade. No
entanto, ainda resta definir – e esta ausência de definição fica clara
ao se analisar algumas imprecisões do discurso de apresentação do modelo
– a forma de estruturação da operação nos novos trechos.
O que se sabe é que o governo federal contratará a construção de
ferrovias da iniciativa privada, provavelmente atrelada à manutenção das
linhas. A VALEC atuará provavelmente, como Poder Concedente e terá a
função de ofertar a capacidade de transporte a operadores de transporte
ferroviário em cada uma das novas linhas férreas a ser instalada. Também
sabemos que poderão adquirir a possibilidade de prestar serviços de
transporte ferroviário nas novas linhas os usuários que tenham intenção
de realizar transporte por vias próprias, as concessionárias de linhas
sob o modelo antigo de integração vertical e que se chamou de operadores
ferroviários independentes, que nada mais são que empresas que se
dedicarão ao transporte ferroviário de cargas exclusivamente. Estes
últimos são independentes, pois não tem carga própria a transportar, nem
linha férrea sob sua administração.
O que resta definir?
Ainda há bastante a ser definido pelo governo federal. O primeiro
ponto, de grande importância, é a escolha de quem será o responsável
pela administração e gestão da ferrovia, o que aparentemente será
delegado à VALEC ou à empresa que realizar a construção e manutenção da
malha. Com a introdução deste novo modelo, a administração da operação
ferroviária ganha extrema relevância, haja vista a necessidade de
organização e planejamento da utilização dos trilhos, sinalização,
horários e tantas outras questões necessárias à viabilização da
exploração de um mesmo trecho férreo por diversos operadores, todos eles
buscando maximizar receitas e prestar serviços semelhantes.
A segunda definição importante sob o ponto de vista jurídico é o
modelo de transferência do direito de exploração do transporte
ferroviário nos novos trilhos. Os maiores candidatos devem ser a
concessão e a permissão de serviços públicos. Mas, considerando a
inexistência de exclusividade na exploração da malha, o regime de preços
que provavelmente será implantado pela concorrência entre as futuras
operadoras, a relação isonômica entre operadoras e administradora das
ferrovias (que poderá ser fixada via contrato de adesão), a aparente
inexistência de bens reversíveis, dentre outras características, um
modelo adequado seria o da permissão de serviços públicos, muito embora a
legislação indique este instrumento como precário.
Por que não é uma PPP?
Esclarecidos alguns pontos essenciais à discussão, retoma-se o ponto
da PPP. Em linhas gerais, uma PPP sempre envolverá uma prestação de
serviços, precedida ou não de obra. Caso os serviços sejam serviços
públicos que prestados por um concessionário não gerem receita
suficiente para sustentação econômico-financeira do projeto, dependendo
de uma complementação paga pelo Poder Concedente, teremos uma concessão
patrocinada. Por outro lado, caso os serviços sejam precedidos de
investimentos e prestados à Administração Pública, com consequente
pagamento integral realizado via Poder Concedente, teremos uma concessão
administrativa. Somente estes dois modelos são considerados Parcerias
Público-Privadas por nossa legislação.
Ou seja, nenhum destes dois modelos de PPP engloba toda a estrutura
da operação open access do modal ferroviário, o que não significa dizer
que não possa existir uma relação contratual sob o regime de PPP em uma
parcela deste novo modelo. A nosso ver, caberia uma PPP para contratação
da instalação, manutenção e, eventualmente, administração dos trechos
ferroviários. Esse modelo inclusive permitiria à Administração Pública
diluir o pagamento pelo investimento na instalação das ferrovias ao
longo do prazo contratual. Na parcela de operação do transporte
ferroviário sobre as novas linhas férreas, o modelo de PPP não seria, a
princípio, viável, seja pela aparente inexistência de pagamentos
realizados pelo Poder Concedente às transportadoras que terão direito de
explorar a linha ou pela inexistência aparente de bens reversíveis.
Portanto, valendo-se dos modelos aplicados em outros países que
trabalham o open access, são pelo menos duas relações jurídicas
distintas a serem firmadas pelo Poder Público com a iniciativa privada:
de um lado, uma contratação para construção e manutenção da ferrovia,
cabendo, eventualmente, a inclusão da administração no rol dos serviços
(esta relação poderia, mas não necessitaria, ser contratada via PPP); do
outro lado, a relação do Poder Público com as transportadoras
ferroviárias, que ao nosso ver receberão o direito de exploração da
malha por permissão de serviços públicos.
E quais os outros desafios para implementação do novo modelo?
Além da elaboração dos projetos, procedimentos de contratação e,
especialmente, a definição dos meios adequados à viabilização do modelo
open access nos novos trechos ferroviários a serem instalados, algumas
questões adicionais ainda deverão ser solucionadas.
O primeiro e talvez mais desafiador ponto a ser lidado é a interação
de dois modelos distintos de operação em um mesmo país. O modelo
brasileiro será único no mundo por ser híbrido, dividindo malhas com
exploração exclusiva de concessionárias e outros trechos com acesso
aberto às transportadoras ferroviárias que obtiverem esse direito.
Compatibilizar o funcionamento conjunto destes modelos será o primeiro
desafio. Características técnicas, de funcionamento, coordenação da
operação, sinalização, dentre outros, deverão ser uniformizados ou ao
menos compatibilizados.
Além disso, desenvolver os mecanismos de compartilhamento de
infraestrutura ferroviária, isto é, os mecanismos de direito de passagem
e tráfego mútuo de forma adequada, será outro ponto de atenção. Para
que o transporte no modelo open access seja viável a todos, os
operadores independentes e os detentores de carga própria deverão ter
segurança na utilização da malha ferroviária dos concessionários sob
regime de integração vertical. Muito embora a norma de regramento dos
institutos de direito de passagem e tráfego mútuo tenha evoluído
bastante, ainda não há maciça utilização prática. O único contrato
atualmente vigente foi celebrado em regime anterior. No entanto, para
garantir aos vindouros operadores independentes força competitiva em
face aos atuais concessionários, será necessária viabilização prática
destes institutos.
Outras questões problemáticas a serem trabalhadas são as metas de
qualidade, regulação e revisão tarifária das concessionárias, dentre
outras. O que se deve destacar nesse aspecto é que boa parte das
questões essenciais ao desenvolvimento deste modelo e sua interação com o
anterior demandará melhoria, capacitação e efetiva atividade da Agência
Reguladora – ANTT. Atualmente a atividade da ANTT quanto às ferrovias
ainda é bastante incipiente, mas a partir do momento em que será
instalado um novo modelo exigindo interação e coordenação entre agentes,
esta atuação deverá ser substancial e, mais importante, qualificada.
Artigo:
Rosane Menezes Lohbauer
Rodrigo Sarmento Barata
Artigo:
02/10/2012
* Rosane Menezes Lohbauer e Rodrigo Sarmento Barata são, respectivamente, sócia e associado do escritório Madrona Hong Mazzuco Brandão – Sociedade de Advogados (MHM)
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O Saber Direito conta com recursos audiovisuais, entrevistas de rua, videografia e muita interatividade.
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Dá um nó na cabeça... Tomara que não dê um nó nas linhas.
C. Pinto
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